quarta-feira, novembro 10, 2010

Morreu o Mengele da última ditadura argentina

O inferno é pouco: Emilio Massera foi uma máquina de matar dentro de outra máquina de matar. Os resultados do regime tirânico que governou a Argentina entre 1976 e 1983 também tiveram a sua colaboração: fragmentação social, destruição produtiva e massacre de milhares de pessoas. Massera poderia ter morrido ontem sem condenação alguma, mas em 31 de agosto último, a Corte Suprema de Justiça confirmou as sentenças dos tribunais inferiores que tinham falado sobre a inconstitucionalidade do perdão de Menem. O artigo é de Martín Granovsky, do Página/12.



Vídeo: O genocida Emilio Massera em dois momentos de sua vida. O primeiro quando, hipocritamente, defendia a imprensa na Argentina; o segundo, no julgamento onde foi condenado por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura argentina.
Ele disse que só estava certo de uma coisa: “De que, quando a crônica for se desvanecendo e a história for se tornando mais nítida, meus filhos e meus netos pronunciarão com orgulho o sobrenome que lhes deixei”. Assim Emílio Eduardo Massera quis defender-se há 25 anos, no Julgamento das Juntas. Terminou condenado à prisão perpétua e destituído, por homicídio agravado, privação ilegítima da liberdade, torturas e roubos. Nascido em Entre Ríos há 85 anos, o ex-almirante morreu ontem em Buenos Aires, enquanto ainda era processado por novas denúncias. A história, contra o que ele queria, foi se tornando mais nítida.


O indulto de Carlos Saúl Menem deixou-o sem a condenação perpétua em 1990. Recobrou a liberdade e voltou a ficar dela privado quando, em 1998, foi processado pelo roubo de bebês. As leis do Ponto Final e Obediência Devida, impulsionadas por Raúl Alfonsín – o mesmo presidente que encerrou na Argentina com o ciclo de anistias ao anular a auto-anistia militar e pedir o processamento das juntas – não beneficiaram os ex-comandantes, mas sim os chefes intermediários, como Jorge Acosta, Alfredo Astiz, Juan Carlos Rolón, Jorge Perrén e Antonio Pernías.


Massera poderia ter morrido ontem sem condenação alguma, mas em 31 de agosto último, a Corte Suprema de Justiça confirmou as sentenças dos tribunais inferiores que tinham falado sobre a inconstitucionalidade do perdão de Menem. Se o indulto não se ajustava à Constituição, então restava de pé a condenação original, de 9 de dezembro de 1985.


A Corte disse que, segundo o Direito Internacional, deve computar-se “a obrigação do Estado Argentino não só de investigar, mas também de punir os delitos aberrantes, dever que não poderia estar sujeito a exceções”. O indulto a processados não se ajusta ao Direito, porque contradiria o dever internacional de investigar. E quanto ao indulto a condenados, como é o caso de Massera, segundo a Corte implicaria escapar da obrigação de punir quando os órgãos judiciais de um Estado encontraram as provas suficientes para produzir a sentença.


A máquina de matar
Impetuoso, sedutor mulherengo, capaz de imaginar alianças com o socialismo europeu ou de buscar a cooptação de dirigentes montoneros, Massera foi uma máquina de matar e de fazer política dentro de outra máquina de matar, e fazer política como foi o Processo de Reorganização Nacional que tomou o poder em 24 de março de 1976.


Os estudiosos não se põem de acordo sobre se a máquina maior, a do Processo, propôs-se intencionalmente os resultados que alcançou: massacre, fragmentação social, desindustrialização e prejuízo para a agricultura, financeirização, queda da participação dos trabalhadores da renda nacional e de seu poder de negociação na luta pela distribuição dessa renda.


Num estudo escrito a quente, em 1979, o economista Adolfo Canitrot falou de um gigantesco processo de disciplinamento social. Para além das intenções ou de um plano escrito, a transformação social da Argentina fala por si mesma.


Qual é o fenômeno que Massera representa? Talvez em seu caso não haja dúvidas de que, em paralelo à marcha da ditadura, ele, sim era parte de um plano político explítico e intencional.


Tão burocrata da morte como Jorge Videla ou Orlando Ramón Agosti, seus companheiros da primeira junta da ditadura, o então Almirante Zero, como o chamavam os seus comparsas da Escola Mecânica da Armada, e como o sublinhou o jornalista Claudio Uriarte, que intitulou assim a biografia de Massera, e o então chefe da Marinha quis acrescentar um valor extra.


Procurou sua projeção como dirigente político a partir da ditadura e, como não bastasse, no meio dela.


Reconheça-se os méritos dele. Jovem oficial antiperonista antes do golpe de 1955, vinte anos depois chegou a se fazer de interlocutor confiável de Isabel Martínez de Perón, presidenta pela morte de seu marido Juan Domingo Perón, em 1° de junho de 1974. A essa altura, já tinha se amarrado ao centro de sua turma, num circuito chave do poder em escala mundial: a organização fascista Propaganda Dos, que buscou se infiltrar na maçonaria italiana e terminou rejeitada por ela, e conseguiu o manejo de porções importantes de decisão no Vaticano, na Justiça italiana, nos serviços de inteligência e nas finanças do mercado negro. Os dois pontos de apoio de Propaganda Dos fora da Itália estavam no Brasil e na Argentina.


Ontem à tarde, assim que soube da notícia, o sobrevivente da ESMA, Víctor Basterra repetiu outra vez seu incrível relato que prova que nada do que se passou é uma fábula. Basterra, submetido a torturas e a trabalho escravo na ESMA, contou que foi forçado a produzir quatro passaportes falsos, para Licio Gelli. Gelli era um dos chefes da P-Due. Condecorado por Perón na Argentina a pedido do então chanceler Alberto Vignes, em 1973, Gelli foi a garantia de continuidade para que estruturas do poder mafioso edificadas em fins do governo de Isabel pudessem seguir vigentes no regime que começou em 1976. E a garantia da garantia se chamou na Argentina Emilio Eduardo Massera.


Basterra contou ontem sua dor pelo fato de que Massera morreria na prisão comum sem uma só condenação por roubo de bebês, entre outras acusações por que ainda respondia. Também relatou por que, num momento de sua prisão decidiu juntar provas. “já me deixavam sair e eu sabia como violar alguns códigos, então fui obtendo elementos valiosos”, disse. Basterra contou que decidiu juntar provas porque num dado momento seus companheiros lhe disseram: “Estes caras não serão vitoriosos”.


A ESMA foi um dos três grandes campos de concentração da Argentina e o maior controlado pela Armada. Os outros dois estavam sob o comando direto do Exército: La Perla, em Córdoba e a sede de Institutos Militares no Campo de Mayo.


As três forças construíram suas formas próprias de relação com setores civis, e tanto investigadores como militantes políticos e dirigentes dos direitos humanos falam cada vez mais de “governo cívico-militar” para se referirem ao regime que governou entre 1976 e 1983. A história desse regime não se ajustaria aos fatos se a suposta peculiaridade de Massera e sua personalidade obscureceram a urdidura de poder que incluiu desde relações com grandes empresários a dirigentes do peronismo, do radicalismo, do socialismo democrático e do comunismo, neste caso por decisão própria e impulso da própria União Soviética.


O projeto
A peculiaridade da construção de Massera se apoiou em alguns traços específicos.


Ele tentou edificar um masserismo que, obviamente, contaria com ele como líder. Assim como os demais comandantes, aproximou-se de dirigentes sindicais enquanto o aparato repressivo terminava com os delegados de fábrica, os dirigentes intermediários e castigava na desaparição de Oscar Smith, o primeiro desafio dos trabalhadores à ditadura. Mas em seu caso não foi só um cálculo de contenção de protestos operários, senão, além disso, a tentativa de uma articulação para o futuro.


Buscou consolidar uma força própria, o Partido para a Democracia Social.


Como um Joseph Mengele da política, tratou de erigir um laboratório. Queria que, mediante o terror, a negociação, a perversão e o aproveitamento do humaníssimo instinto de sobrevivência fosse possível, primeiro, a absorção de conhecimentos sobre o que pensava a guerrilha montonera e, depois, a conversão de alguns de seus quadros em quadros próprios.


No entanto, não o conseguiu. Salvo dois ou três casos, os cativos da ESMA submetidos à servidão não se converteram em membros da inteligência da turma e, quando cada um viu chegado o momento, cada sobrevivente se transformou num testemunho que contribuiu para a que a sociedade conhecesse o que havia ocorrido, quem tinham sido os latifundiários do Almirante Zero e como funcionava por dentro a máquina de matar.


Na distribuição militar dos papéis, a Armada de Massera não obteve o ansiado Ministério da Economia, que o Exército reservou para si até garantir uma colaboração entre Videla e Martínez de Hoz. Massera conseguiu, em troca, entre outros estímulos do poder, o controle do Ministério de Bem Estar Social e a Chanceleria. Por meio do assassinato do general Omar Actis , [o Ministério do] Bem Estar Social ficou articulado com o Ente Autárquico Mundial ’78, a cargo do almirante Alberto Lacoste. A chanceleria funcionou como uma prolongação internacional da ESMA.


Os quadros da marinha Oscar Montes e César Guzzetti estiveram a cargo do Ministério de Relações Exteriores, quando se desenvolveu o Plano Condor, de colaboração, entre as ditaduras da América do Sul, em matéria de intercâmbio de informação, de prisioneiros e até de bebês roubados. O número dois, o capitão de navio Gualter Allara, seria contra-almirante de Operações Anfíbias no desembarque que chegou à guerra das Malvinas de 1982. Chegado à chancelaria com a Revolução Libertadora de 1955, Frederico Barttfeld foi o delfim de Massera entre um grupo de diplomáticos de carreira. Falecido em 2009, Barttfeld pertencia à P-Due como Massera, Gelli e o então chefe da repressão na Capital Federal e a província de Buenos Aires, o general Carlos Guillermo Suárez Mason. Quando o primeiro embaixador da Junta em Caracas, o radical balbinista Héctor Hidalgo Solá foi chamado a Buenos Aires e assassinado, Barttheld ocupou seu lugar em Caracas. Alí funcionava um Centro Piloto, como o de Paris.


Aquela construção que somava política mais inteligência militar é a que explica que vestígios de masserismo apareçam na política atual. Terminado o ciclo masserista na Armada – onde, ao contrário de seu colega de Exército Roberto Bendini, com o retrato de Videla, o almirante Jorge Godoy fez com que se tirasse o quadro de Massera sem que Néstor Kirchner tivesse que ordenar-lhe que procedesse – a cada momento reaparecem mostras do poder de massera em órgãos do Estado democrático.


Isso ocorreu durante o menemismo na Direção de Migrações, dirigida pelo capitão da Marinha aposentado Aurelio Za Za Martínez, e no Ministério de Educação de Maurício Macri, ocupado pelo masserista Abel Parentini Posse. Ocorreu também na embaixada da Venezuela que, por designação de Eduardo Duhalde, Carlos Ruckauf, Esteban Caselli e Martín Redrado, foi ocupada pelo embaixador de carreira Eduardo Sadous. Como jovem diplomata, Sadous foi colaborador de Vignes e depois, já na ditadura, de Gelli, quando este operava na Itália a partir da embaixada argentina em Roma. Outros quadros do Masserismo terminaram em negócios privados. Foi o caso de Jorge Radice, sócio de Rodolfo Galimberti até a morte deste, e de Ricardo Cavallo, que desenvolveu empreendimentos tecnológicos no México até ser extraditado para a Espanha e, finalmente, para a Argentina.


Uma parte desses oficiais participou em outra parte do projeto masserista (ainda que, cabe lembrar mas uma vez, isso não tenha sido privativo da Marinha mas sim um método compartilhado por outras forças e chefes militares) que foi a apropriação de bens de sequestrados. Um dos casos mais barulhentos foi a Chácara de Coria, propriedade de Victorio Cerutti, obrigado a vender seus bens assim como ocorreu com seu advogado, Conrado Gómez. Os dois foram sequestrados em 1977. Em lugar de se apagar com o tempo, a história é cada vez mais nítida.


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Tradução: Katarina Peixoto


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