quarta-feira, março 16, 2011

as coisas ainda vão ferver nos Estados Unidos


VI O MUNDO


*Paul Krugman: Outro Inside Job

Another Inside Job
By PAUL KRUGMAN, no New York Times
Published: March 13, 2011


Contem-me entre aqueles que estão felizes em ver o documentário “Inside Job” ganhar um Oscar. O filme nos lembrou que a crise financeira de 2008, cujos efeitos ainda estão contaminando as vidas de milhões  de americanos, não apenas aconteceu — se tornou possível pelo mau comportamento de banqueiros, reguladores e, sim, economistas.
O que o filme não apontou, no entanto, é que a crise gerou uma série completamente nova de abusos, muitos dos quais tão ilegais quanto imorais. E figuras políticas importantes estão, finalmente, mostrando seu ultraje. Infelizmente, este ultraje é dirigido não contra os abusos dos bancos, mas contra aqueles que estão tentando cobrar os bancos pelos abusos.
O ponto imediato de conflito é um acordo proposto entre os procuradores-gerais estaduais e a indústria dos financiamentos imobiliários. Aquele acordo é “extorsão”, diz o senador Richard Shelby do Alabama. O dinheiro que os bancos seriam forçados a separar para o refinanciamento da hipotecas seria “extorquido”, declara o The Wall Street Journal. E os próprios banqueiros dizem que qualquer ação contra eles colocaria a recuperação econômica em risco.
O que vai na direção de confirmar que os ricos são diferentes de você e de mim: quando eles violam a lei, são os promotores de Justiça que acabam em julgamento.
Para ter uma ideia sobre do que estamos falando, olhe a denúncia feita pelo procurador-geral de Nevada contra o Bank of America. A denúncia acusa o banco de atrair famílias para seu programa de refinanciamento [de hipotecas] — supostamente para ajudá-las a manter suas casas — sob falsas promessas; de dar informações falsas sobre as condições do programa (por exemplo, ao dizer às famílias que elas deveriam parar de pagar as prestações antes do refinanciamento); de segurar as famílias com promessas de ação, para em seguida “mandar notícias de despejo, marcar a data da venda das casas e mesmo vender casas de pessoas que esperavam pelo refinanciamento”; e, em geral, de explorar o programa com o objetivo de enriquecer às custas das famílias.
O resultado final, de acordo com a denúncia, é que “muitos consumidores de Nevada continuaram a pagar as prestações de hipotecas com as quais não podiam arcar, arruinando suas poupanças, seus fundos de aposentadoria ou a reserva que cuidaria da educação dos filhos. Adicionalmente, devido às garantias enganosas do Bank of America, os consumidores perderam oportunidades de venda ou outras chances de mitigar suas perdas. E esperaram ansiosamente, mês após mês, ligando para o Bank of America e submetendo documentos várias vezes, sem saber se e quando perderiam suas casas”.
Ainda assim, essas coisas só aconteceram para os “losers” que não conseguiram pagar as prestações da hipoteca, certo? Errado. Recentemente, Dana Milbank, colunista do Washington Post, escreveu sobre sua experiência: um refinanciamento rotineiro com o Citibank se tornou um pesadelo, com oferta de taxas [de juros] enganosas, cobrança imprópria e contas bancárias congeladas. E todas os indícios sugerem que a experiência do sr. Milbank não foi incomum.
Notem, aliás, que não estamos falando das práticas de operadores improvisados; estamos falando de duas das três maiores companhias financeiras, com cerca de 2 trilhões de dólares cada em bens. Ainda assim, políticos gostariam que você acreditasse que qualquer tentativa de fazer com que estes gigantes façam uma modesta restituição é “extorsão”. A única questão real é se o acordo proposto deixa os bancos escaparem com punição muito leve.
E quanto ao argumento de que fazer demandas ao bancos colocaria em risco a recuperação econômica? Há muito a ser dito sobre este argumento, mas nada de bom. Mas deixem-me enfatizar dois pontos.
Primeiro, o acordo proposto apenas prevê que sejam aprovados refinanciamentos que produzam “valor atual” maior que o que resultaria do despejo e leilão [dos imóveis] — ou seja, que resultem em acordo que seja do interesse tanto dos donos de imóveis quanto dos bancos. A verdade ultrajante é que em muitos casos os bancos estão bloqueando acordo mutuamente benéficos, para que possam continuar extraindo taxas [dos compradores]. Como acabar com este assalto pode ser ruim para a economia?
Segundo, o grande obstáculo para a recuperação não é a condição financeira dos grandes bancos, que foram salvos uma vez e estão agora lucrando com a percepção ampla de que serão salvos novamente se alguma coisa der errado. O grande obstáculo, em vez disso, é a grande dívida dos domicílios combinada com a paralisia do mercado imobiliário. Forçar os bancos a acabar com as dívidas de hipotecas — em vez de amarrar as famílias para extrair delas mais alguns dólares — ajudaria, não prejudicaria a economia.
Nos dias e semanas que vem aí, veremos políticos pró-banqueiros denunciar o acordo proposto, alegando que estão apenas defendendo o cumprimento das leis. Mas o que eles estão defendendo na verdade é exatamente o oposto — um sistema no qual apenas os pequenos devem obedecer a lei, enquanto os ricos, especialmente os banqueiros, podem enganar e fraudar sem consequências.


PS do Viomundo: Para o Krugman, sempre cauteloso, escrever isso, é sinal de que as coisas ainda vão ferver nos Estados Unidos, como identificou muito bem o Michael Moore neste discurso feito em Wisconsin. O ataque dos de cima agora é claramente contra a classe média americana, enquanto Obama, perdido, assiste a tudo, buscando algum tipo de acordo com os republicanos. Moore, sem citar Obama no discurso, se diverte com a falta de espinha dos democratas (aliás, o humor e o sarcasmo tem sido poderosas ferramentas de mobilização por lá).


Leia aqui o artigo do professor Belluzzo: Obama não leu Roosevelt


* Paul Krugman é Premio Nobel de Economia de 2008
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Ilustração por aly do Letteri Café: http://www.letteri.blogger.com.br/index.html