quarta-feira, julho 06, 2011

Petraeus: chance de melhorar o seu ‘legado afegão’

6/7/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/MG07Df03.html

David Petraeus, comandante dos EUA no Afeganistão, vai bater por dois anos e meio o recorde histórico de Douglas MacArthur. MacArthur precisou de todo esse tempo para cumprir o voto de “Eu voltarei”, que fez ao deixar as Filipinas em março de 1942.

Petraeus voltará à zona de guerra praticamente no dia seguinte, depois de partir, esse mês, do Afeganistão. No instante em que chegar a Langley, Virginia, para dirigir a Agência Central de Investigações dos EUA (CIA), Petraeus vestirá trajes civis e, metaforicamente, voltará imediatamente para o Hindu Kush.

Petraeus deixa o Afeganistão como general insatisfeito, que não venceu sua última guerra. Não conseguiu a ‘virada’ que tentou no Iraque e seu legado no Afeganistão fica inacabado, bem próximo do que se conhece como derrota. Nenhum general quer isso no currículo.

Mas o legado final de Petraeus ainda poderá ser melhorado. A estratégica de contraterrorismo dos EUA divulgada na 4ª-feira passada por John Brennan, conselheiro da Casa Branca, muda de foco: trata-se agora de eliminar terroristas usando tecnologia e meios militares sofisticados, sem ter de manter grande número de soldados na área
[1].

O próprio Petraeus fez declaração muitíssimo importante na 2ª-feira, cronometrada atentamente para coincidir com seu último 4 de Julho em uniforme
[2]. Disse que o foco da guerra do Afeganistão mudará nos próximos meses: do sul, para a porosa fronteira leste com o Paquistão, onde grupos afiliados da al-Qaeda e vários grupos militantes ainda permanecem ativos.

Explicou que “É uma mudança de instrumentos e competências de inteligência. Mudamos dos helicópteros armados. Talvez mudança de uma coalizão relativamente pequena de forças em campo e forças afegãs substanciais em campo” Para Petraeus, seria uma evolução estratégica, depois da fase sob seu comando, das operações militares.

Paraíso seguro

Verdade é que a mudança já começara, de fato, dia 15 de fevereiro – menos de três semanas depois que o importante agente de inteligência dos EUA Raymond Davis foi preso pelas agências da segurança do Paquistão em Lahore –, quando as forças da coalizão começaram repentinamente um processo de retirada das posições de combate no vale Pech na província de Kumar, no leste do Afeganistão, junto à fronteira paquistanesa. Os EUA disseram, então, que a retirada seria parte de um plano para mover as forças para áreas mais populosas; essa operação prosseguiu até ser completada dois meses depois.

Várias unidades do exército afegão também estacionadas em Kunar também saíram de lá. Como era de esperar, grupos insurgentes instantaneamente avançaram para lá, no vácuo de segurança. Dentre outros grupos, movimentaram-se Talibã afegãos e paquistaneses, os grupos Hizb-i-Islami, Lashkar-e-Taiba e vários afiliados da al-Qaeda. Não por coincidência, logo nas primeiras semanas depois da libertação de Davis no final de março, começou uma “guerra de baixa intensidade” ao longo da Linha Durand que separa o Afeganistão e o Paquistão.

Grupos militantes que usavam Kunar como paraíso seguro começaram a atacar forças de segurança do Paquistão ao longo de toda a fronteira. O Paquistão reclamou de ataques além fronteira; os militantes mataram 56 paramilitares paquistaneses e da polícia tribal e feriram 81 militares, só em junho. Por sua vez, o Ministério do Interior do Afeganistão diz que sofreu ataques de cerca de 800 foguetes desde o início de junho, que mataram 12 mulheres e meninas e 30 homens. Houve cerca de 55 feridos e 120 casas destruídas.

Os sentimentos pashtuns estão-se voltando contra o Paquistão. Tem havido manifestações públicas em Asadabad, capital da província de Kunar. Importante general e chefe de Polícia do Afeganistão em Asadabad demitiu-se, depois da resposta do governo aos ataques. Um destacado deputado da província Nangarhar, dominada pelos pashtuns, Fraidoon Momand, conclamou o presidente Hamid Karzai a romper relações com o Paquistão “por causa da chuva de morteiros paquistaneses que matou muitos civis inocentes.”

A fúria que cresce entre os pashtuns afegãos com certeza ressoará entre os pashtuns que vivem no Paquistão; e pode começar daí um ciclo vicioso de hostilidades. No domingo, mais de 300 militantes cruzaram a fronteira para o Paquistão e atacaram um posto de controle paquistanês – o sexto ataque além fronteira, em um mês. O porta-voz do exército do Paquistão, major-general Attar Abbas, teria dito, como os jornais publicaram, que “Já há algum tempo temos dito que há paraísos seguros que não consideram a fronteira. É preciso fazer alguma coisa.”

Não por acaso, matéria da Voz da América, na 2ª-feira, chamava a atenção para algumas graves implicações dessa situação:

“Fator que contribui para aumentar a tensão nessa fronteira – a chamada “Linha Durand” –, é que a região é disputada desde que foi criada no século 19 pelos britânicos. Tribos que ainda se agarram ao sonho de uma nação pashtun unificada recusam-se a reconhecer o que chamam de ‘linha arbitrária’. Mas os anciãos, em muitas vilas da região, que também são pashtuns étnicos, têm-se mostrado cada dia mais indignados com os ataques e dizem que podem pegar em armas contra os paquistaneses, se os ataques continuarem.”
Longos anos de guerra “assimétrica”

Para dizer tudo numa linha: a rápida retirada dos soldados norte-americanos e afegãos em Pech empurrou grupos militantes afegãos contra o exército paquistanês ao longo da Linha Durand, numa guerra “assimétrica”. Os militares paquistaneses, é claro, estão obviamente incomodados com a repentina retirada dos soldados norte-americanos e afegãos; e mantêm-se de lado, assistindo aos desenrolar dos acontecimentos.

Karzai adotou abordagem seletiva. Está discutindo a questão nos planos político e diplomático com o Paquistão, mas ordenou que soldados afegãos não reajam contra fogo paquistanês. Bem claramente, tenta não dar pretexto para que o Paquistão encene qualquer “perseguição quente” contra os grupos insurgentes baseados em Kunar. De fato, para fazer justiça ao governo de Kabul, Karzai tem pouco, talvez nenhum, controle real sobre as áreas de fronteira.

O movimento ascendente da curva da “guerra de baixa intensidade” alarmou o comando militar paquistanês. O Paquistão iniciou deslocamento de soldados, no fim de semana, na estratégica Agência Kurram – uma das rotas de fuga que os militantes usam do Waziristão Norte para as montanhas de Tora Bora. Está sendo organizada vasta operação que envolverá artilharia e jatos bombardeiros. Mas é mais fácil falar, que fazer. Rahimullah Yusufzai – um dos mais sensíveis analistas paquistaneses da questão afegã – escreveu na 3ª-feira:
“A ausência de qualquer controle pelo Estado nas fronteiras ao longo da Linha Durand, nem do lado do Paquistão nem do lado do Afeganistão, permitiu que os militantes instalassem ali as suas bases e passassem a operar impunemente (...) Os ataques transfronteiras que invadem território do Paquistão e as respostas de retaliação das forças de segurança paquistanesas têm provocado tensões na região e inflamado as paixões, sobretudo no Afeganistão (...). Mas as ações militares de larga escala também provocam mortes e êxodo de civis, além de perdas econômicas. Já há 4.000 famílias desabrigadas na Agência Kurram, que se somam aos refugiados do Waziristão Sul, Mohmand, Bajaur e outras regiões, e que esperam ser indenizados e realocados (...). O longo conflito que aguarda o Paquistão já criou problemas cuja solução exigirá anos de trabalho.”
A grande incógnita é se a crise crescente levará o Paquistão a repensar inteiramente sua política para o Afeganistão. Sem qualquer dúvida, a principal contradição da política do Paquistão já está, hoje, bem visível – a diferença que lá se cria entre “Talibã do bem” e “Talibã do mal”. Os eventos nas agências tribais ao longo da Linha Durand mostram bem claramente os laços e cadeias de apoio mútuo que aproximam e unem todos os Talibã. O Paquistão está tornando-se vítima do terrorismo.

O objetivo da política paquistanesa de instalar os seus “ativos estratégicos”no poder em Kabul tão logo os EUA se retirem de lá mostra-se, cada dia mais, como quimera, se se vê que o exército paquistanês não consegue arrancar-se, sequer, do labirinto de pashtuns na Linha Durand. Como comentou o jornal Daily Times, “a política de mão dupla dos paquistaneses para os Talibã pode pôr a perder todo o plano de jogo em nome do qual o Paquistão expôs seu território e seu povo a tão graves riscos. Já se veem claros, hoje, o retorno cada dia menor e os graves defeitos daquela política.”

É uma curiosa ‘virada’ nos movimentos de encerramento da guerra do Afeganistão. O quanto disso tudo brotou dos miolos de Petraeus ou deve-se a circunstâncias fortuitas é questão que se deve deixar para os historiadores militares do futuro. No presente, os militares paquistaneses precisam desesperadamente da ajuda das forças da coalizão, na fronteira com o Afeganistão.

O que interessa aos EUA

Nesse ponto, precisamente, entra a “oferta” que Petraeus trouxe, de deslocar para leste o locus da guerra: pode ser o alívio que o Paquistão esperava. Mas Petraeus disse que a mudança só acontecerá ao longo de vários meses – provavelmente, só depois da atual “estação de combates”. O que significa que, no curto prazo, as forças paquistanesas terão de encarar sozinhas a orquestra.

O que mais interessa aos EUA é que, sob a terrível pressão que se acumula ao longo da Linha Durand, o Paquistão faça, afinal, o que Washington sempre quis que fizesse: iniciar operações militares no Waziristão Norte. E em termos políticos, a preocupação dos militares paquistaneses com a segurança da Linha Durand dá aos EUA bons motivos para acelerar as conversações diretas com as lideranças dos Talibã.

Por trás de tudo isso, claro, está o que os EUA mais desejam que os militares paquistaneses façam: politicamente, que entreguem o grande chefe Talibã Mulá Omar; militarmente, que destruam a rede Haqqani.

De seu gabinete na CIA, em Langley, Petraeus estará monitorando o andamento dos trabalhos, polindo os passos finais de seu ‘legado’ na guerra afegã.