sexta-feira, janeiro 27, 2012

A indignação pode ser apenas o alfa, o grau zero da política, jamais o ponto de chegada.

Não vou escrever sobre o massacre, a tragédia, a desumanidade de Pinheirinho. Li inúmeros textos exasperantes, tantas análises desesperançadas, tanta crítica pela via negativa. Lendo alguns comentários, parece que um ou outro inclusive torce para que tenha havido mortos (e não duvido tenha). Fico com a impressão que se aparecessem os cadáveres, essas pessoas iriam comemorar, correndo a seus tuíteres e facebooks. Talvez alguns militantes precisem assistir às coisas sofrerem e morrerem, mas sempre à distância, a uma boa e segura distância, para vicariamente viver a indignação redentora, o gozo às avessas do desastre. O mecanismo depressivo culmina na culpabilização da população como um todo. Por que não se revolta afinal?, não é possível, só pode estar alienada pela grande imprensa, ou seriam mesmo incapazes e insensíveis para reconhecer a guerra contra os pobres.
A indignação pode ser apenas o alfa, o grau zero da política, jamais o ponto de chegada. Não discordo que algumas pessoas, diante do bombardeio, se indignem a ponto de fazer a diferença. Essas compreendem ou sentem na pele que Pinheirinho é uma condição que as atravessa. Somente assim, como condição existencial, consegue mobilizar o desejo. Essa potência que nos arranca dos esquemas cotidianos e nos convoca a ser o que não somos. Coloca-nos numa posição em que temos tudo a perder, menos a liberdade. Esse desejo que instiga a ocupar praças e ruas, a envolver-se em organização política, a deslizar da rotina e reinventar o tempo de vida para a gestação de outro mundo. A arriscar o mundinho em que nos acomodamos. Menos conversão do que elaboração. Por que fazer política? Ora, como não fazer? Agora, imediatamente.
A maioria dos indignados, desconfio, se restringe a retuitar, a reproduzir murais de facebook e exprimir sentimentos vagos de revolta. Até que o tópico da vez mude, quem sabe outro quase-estupro em rede nacional (“aquela trepadinha tipo vagabundérrima”, nas palavras de uma amiga). Solidarizar-se moralmente com as vítimas nunca foi suficiente. Elas sequer desejam o nosso apoio moral, esse disfarçado sentimento de pena. Não passa de outro insulto, que repete a humilhação. As redes sociais também contêm dispositivos para desanuviar a própria culpa. E compartilhar da expiação num grande ritual coletivo de má consciência e auto-enlevo. Pintar o governador de Hitler e a juíza de Eva Braun: bodes expiatórios para a servidão voluntária de cada um. Coletivizar a culpa é isentar os algozes, mas culpar somente os algozes é isentar a todos, em erro simétrico. Hitler foi um dos responsáveis, mas também quem assistia a contingentes desaparecendo dos prédios, vizinhos sumidos do nada, e muito convenientemente se convencia que os policiais só estavam cumprindo a lei, que talvez não fosse a solução justa, mas era a solução do estado e vivemos num estado de direito. Então que se há de fazer, né. A lei se cumpre como princípio da civilização, ponto.
Que isso está muito errado é óbvio. Quem se convence disso afogou-se no próprio cinismo. Desde Eldorado de Carajás, São Bonifácio, Candelária, desde as remoções olímpicas das grandes cidades, desde o choque de ordem contra pobres, camelôs e cracolândias, desde o racismo de sempre. Desde Canudos, Palmares, Haximu, Capacete. Que a grande imprensa trabalha para a manutenção da ordem é óbvio. Qualquer um em Pinheirinho sabe porque foram removidos. Sabe melhor do que os acadêmicos de direito. Basta ouvir os moradores. Porque tem muito dinheiro envolvido, porque os poderosos não podem aceitar vida fora das regras instituídas (a propriedade e o trabalho), porque não pode virar um tão mau exemplo para os pobres do mundo. Lidar com um Pinheirinho já dá tanto trabalho, imaginem mil, dez mil ocupações atrevidas? Não pode.
Pra mim, Pinheirinho não pode ser exemplar como repressão violenta do estado, como se pretende gravar na história. Esse é o mau exemplo, que não deve ficar como exemplo. Pinheirinho é exemplar como re-existência diante dessa ação violenta, que é sistemática e permanente. A favela teve a ousadia de politizar-se, produzir ela mesma os direitos, de fazer frente à repressão, de antagonizar afirmativamente. Comprou a briga. Desabrochou uma cultura de resistência, articulou-se com movimentos e sindicatos. Essa afirmação de discurso insurgente circulava na comunidade, conferindo autoestima. Sem nenhuma ajuda do poder público, a comunidade se autoconstituiu em várias dimensões: como tempo social, cultural, político. Estava se virando na pobreza, apesar de tudo.
Quando tentaram negociar, Pinheirinho inquietou-se: por que deveriam se subordinar a projetos de moradia proletária, se havia terra desocupada e abundante para viverem como gatos, animais sociais que já nascem pobres e livres? Por que aderir a um consenso que deprime, à miséria com que tentam comprar-nos? E respondeu com todas as letras que as autoridades estavam erradas, que as pessoas tinham, sim, o direito de ali produzir o seu mundo. Que tinham o direito e que iriam ficar, porque podiam e era isso. Está desvelado o conflito que existia desde o começo, camuflado. O constituinte contra o constituído. O direito achado na rua contra o ativismo judicial, como daquele desembargador orgânico da operação, debelando in loco remédios jurídicos. O direito do comum contra essa concreção do mando capitalista chamada propriedade, uma máscara atrás da qual sempre há dois lados em posição desigual. A legalidade, sim, pode ser apropriada como arma de resistência, não deve jamais ser descartada em princípio; mas que não nos iludemos: na materialidade, o direito estatal não está imbuído de altos valores humanistas, nem pondera valores com imparcialidade, muito menos embute consensos racionais de justiça ou idéias reguladoras de bem.
Meu ponto é que, nos meios de esquerda, a questão de Pinheirinho está desfocando. Está moralizando, tendendo ao esquerdismo fácil. Falam muito da violência do estado, da truculência, da humilhação, dos direitos humanos etc etc. E, em certa medida, se está correto em falar e é verdade e indigna e não é novidade. Não me entendam mal. Mas não se pode perder a perspectiva. A força e inovação de Pinheirinho é que eles resistiram, eles tensionaram até o final, eles foram os inadaptados, os problemáticos, os pinos redondos em buracos quadrados. Poucos estão falando como Pinheirinho foi uma singularidade não porque foram vítimas, mas porque resistiram e cantaram e ainda carnavalizaram a polícia, — uma ousadia inominável ante a corporação mais fascista do estado federativo mais fascista deste país apinhado de fascistas.
Não podemos perder o essencial, o significado afirmativo e empoderador. Do contrário estaremos fazendo exatamente o que pretendem que façamos: perpetuar a opressão no plano simbólico e botar medo em quem resiste. Torço para que as fotos dos fogos e medos não vinguem. Que continuem a inspirar ações as fotos de Pinheirinho à moda do incrível exército de Brancaleone. Do contrário, passaremos adiante a mensagem dos poderosos: frisar a consequência exemplar para outros Pinheirinhos do Brasil. Esses mil Pinheirinhos que, sem medo, na alegria e na ousadia, instituem e sustentam outra forma de viver a liberdade e as relações sociais, reapropriando-se da riqueza de todos. Enfim, só os mil Pinheirinhos do Brasil, tensionados e insurgidos, podem comprovar quem são os fracos da história, e quem são os mortos, e quem viverá.
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Recomendo o melhor artigo sobre o caso, por João Telésforo Medeiros no Brasil & Desenvolvimento: Justiça não é pacificação.