domingo, março 04, 2012

Um ‘plano Kosovo’ para a Síria



A Síria está de volta à Mesa da Ferradura, no Conselho de Segurança da ONU. Já circula entre os membros do CS-ONU uma terceira versão de resolução, iniciativa de EUA e França. A nova resolução exige acesso para a ONU e “outras organizações humanitárias”, para socorrer o povo sírio. Exige também cessação imediata de operações militares do regime, libertação de presos e retirada das forças do governo de vilas e cidades. O acesso de missões humanitárias é requerido imediatamente:[1] a nova versão de resolução exige que Damasco passe a cooperar com a ONU e “outras organizações humanitárias” dentro de 24 horas.

O ocidente conta com isolar a Rússia, dentro do grupo P-5, promovendo a China. A imprensa ocidental tem feito circular matérias segundo as quais a China limitar-se-ia a abster-se, sem vetar outra resolução sobre a Síria. Segundo matéria da AFP, de Pequim, o ministro das Relações Exteriores da China, Yang Jiechi, teria garantido pessoalmente[2] à Liga Árabe que Pequim não bloquearia o envio de uma missão humanitária.

Quanto ao referendo constitucional na Síria, Moscou apoiou[3] sem reservas. Pequim ainda não se manifestou. Mas matéria publicada há algum tempo em Xinhua, repleta de ‘ses’ e ‘mas’, manifestava-se claramente a favor do referendo. The Global Times foi mais claro: “A China deve cerrar fileiras com a Rússia e apoiar a votação [na Síria] (...) China e Rússia devem apoiar e ajudar na reforma do regime de Assad (...)”

O GT argumentava: “No passado, a China desenvolveu-se, sem ter de enfrentar uma ordem mundial dominada pelo ocidente. Mas em anos recentes, a ordem mundial tem mostrado tendência a limitar o crescimento da China. É inevitável que, agora, a China considere a necessidade de confrontar aquela ordem. A questão Síria pode ser vista como ponto não buscado de confrontação.”[4]

Na mesma linha, o China Daily, estatal, publicou com destaque uma entrevista com o embaixador sírio em Pequim, com algumas observações bem duras[5] sobre o papel do ocidente na oposição síria.

Mais significativamente, o jornal People’s Daily publicou hoje forte ataque,[6] questionando os motivos do ocidente e identificando a China à Rússia e a outros “países sérios”. O comentário apresenta como “sem qualquer fundamento e carregadas de mentiras” as declarações da secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton na reunião dos ‘Amigos da Síria’ em Túnis, na 6ª-feira passada.

O comentário apóia firmemente o referendo realizado na Síria, apresentando-o como “a mais importante reforma jamais levada a efeito pelo governo sírio, e espera-se que sirva como guia para a nação, numa nova era de pluralismo político e multipartidarismo.”6

A imprensa chinesa, ainda recentemente, publicou comentários fortes[7] sobre a situação síria, com críticas ao ocidente. O comentário de hoje acompanha essa linha, com os chineses reafirmando a mesma posição firme; tem o objetivo, também, de desmentir a ‘impressão’, que está sendo construída pela imprensa ocidental, de que a China estaria começando a ‘afrouxar’ na sua posição sobre a Síria.

Seja como for, a China cuida atentamente de não pressionar desnecessariamente suas relações com os EUA. Comentário publicado em People’s Daily na 4ª-feira[8] conclamava Washington a “encontrar um modo de partilhar direitos e poderes com a China.” Mas no que tenha a ver com a Síria, a China traçou linha bem clara, da qual não se afasta: qualquer tipo de intervenção ocidental na Síria será abrir “uma caixa de Pandora”.

O xis da questão é se a chamada ‘missão humanitária’ organizada pelo ocidente não se converterá em primeiro passo para outra intervenção como se viu na Líbia, dessa vez na Síria. Moscou e Pequim não tomarão decisões sem considerar muito profundamente cada passo.

Semana passada, o diário saudita pró-establishment Asharq al-Awsat publicou matéria em que se citam fontes militares dos EUA, que dizem que o Pentágono já trabalha numa intervenção “de tipo Kosovo” na Síria[9], com ou sem mandado oficial do Conselho de Segurança da ONU.

Esse plano Kosovo envolve intervenção militar apresentada como missão de segurança que acompanharia a missão humanitária, ideia que já se viu também sob a forma de “zonas aéreas de exclusão” e outras. Interessante: funcionários do governo turco, em Ancara, já começaram também a falar sobre o mesmo tema[10] – um plano Kosovo para a Síria. Obviamente, há passarinhos voando pelos céus e sincronizando todas essas declarações e aquela nova versão de resolução em estudo no Conselho de Segurança.

A CNN também noticiou que o Pentágono está traçando planos militares “detalhados”[11] para intervenção na Síria. Contudo, é difícil imaginar que, sem algum tipo de autorização pela ONU, a Turquia ou a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tenham a audácia de invadir militarmente a Síria. O que, afinal, faz, da construção de algum tipo de resolução no Conselho de Segurança, um momento decisivo, crucial.

O enredo que o ocidente está tentando construir visa a apresentar Rússia e China como votos que estariam impedindo que a comunidade internacional cumpra a nobre missão de garantir socorro humanitário ao povo sírio.

Não surpreendentemente, Damasco bateu a porta no nariz de Valerie Amos, chefe do setor de ajuda humanitária da ONU, já prevendo que Washington tentaria explorar aquela visita[12] para ajudar o secretário-geral, Ban Ki-Moon, que, em New York, pisa fundo no acelerador do front da propaganda. Ban, aplicadamente, serve de ator coadjuvante dos EUA, na questão síria.



[9] 26/2/2012, Asharq, Arábia Saudita, http://www.asharq-e.com/news.asp?section=1&id=28622